Cinabrio |
E. T. A. Hoffmann
Tradução:
Karin Volobuef
Pimeiro Capítulo
O pequeno monstrengo — Grande perigo de um nariz sacerdotal — Como o Príncipe Paphnutius introduziu o Iluminismo em seu reino e a fada Rosabelverde ingressou em um estabelecimento de reclusão para moças nobres.
Nas imediações de uma graciosa aldeia, logo à beira do caminho, uma pobre camponesa em farrapos jazia estirada no chão que ardia com o calor do sol. Atormentada pela fome, ressequida pela sede, quase sucumbindo de fraqueza, a infeliz havia caído sob o peso do cesto carregado de uma grande pilha de lenha seca, recolhida a duras penas na floresta, debaixo das árvores e arbustos; e, como mal conseguia respirar, não tinha mais dúvidas de que estava prestes a morrer e que assim, pelo menos, sua desgraçada miséria terminaria de uma vez. No entanto, logo conseguiu reunir forças suficientes para soltar as cordas com as quais tinha atado o cesto de madeira às costas, e alçar-se até um torrão de relva que havia ali perto. Lá ela prorrompeu em altas lamentações:
— Será — lastimava-se — será que todas as necessidades e misérias têm de se abater unicamente sobre mim e meu pobre marido? Não somos nós, afinal, os únicos na aldeia que, apesar de todo o trabalho, todo o suor penosamente derramado, permanecemos em constante pobreza, mal conseguindo o bastante para acalmar a fome? Há três anos, quando meu marido encontrou aquelas moedas de ouro ao remexer a terra em nossa horta, aí sim, acreditamos que a sorte tinha finalmente batido à nossa porta e que os bons tempos iriam começar; mas o que aconteceu!... Ladrões roubaram o dinheiro, a casa e o celeiro queimaram debaixo de nosso nariz, o cereal no campo foi destroçado pelo granizo e, para cúmulo de nosso sofrimento, o céu ainda nos castigou com este pequeno monstrengo que eu dei à luz para a vergonha e o escárnio de toda a aldeia... No dia de São Lourenço o menino completou dois anos e meio mas, com suas perninhas de aranha, não consegue ficar em pé nem andar e, em vez de falar, rosna e mia como um gato. Além disso, o malfadado aborto devora sua comida como se fosse o mais forte dos meninos de pelo menos oito anos sem que isso lhe traga o menor proveito. Que Deus tenha piedade dele e de nós por sermos obrigados, para nosso tormento e maior penúria, a alimentar o menino até que fique grande; pois certamente o Pequeno Polegar irá comer e beber sempre mais e mais, mas trabalhar, ah, isso ele não vai fazer em toda a sua vida!... Não, não, isto é mais do que um ser humano pode agüentar sobre esta Terra!... Ah, se eu apenas pudesse morrer... apenas morrer!" E com isto a pobre começou a chorar e a soluçar até que, subjugada pela dor, totalmente enfraquecida, adormeceu...
Com razão a mulher podia lamentar-se pelo horrível monstrengo que trouxera ao mundo há dois anos e meio. Aquilo, que bem se poderia tomar à primeira vista por um toquinho de madeira estranhamente retorcido, era de fato um menino disforme que mal alcançava dois palmos de altura e que, tendo-se arrastado para fora do cesto onde estava estendido de través, agora rolava grunhindo sobre a relva. A coisinha tinha a cabeça profundamente enfiada por entre os ombros, o lugar das costas era ocupado por uma excrescência semelhante a uma abóbora e, logo abaixo do peito, pendiam-lhe as perninhas finas como vara de aveleira, de modo que o menino parecia um rabanete partido. Seria difícil que olhos obtusos discernissem algo do rosto, mas, olhando-se mais atentamente, com certeza se perceberia o nariz comprido e pontiagudo que despontava em meio aos cabelos escuros e desgrenhados, e um par de pequenos olhinhos negros e faiscantes que — sobretudo tendo em vista os traços de resto bem envelhecidos e enrugados do rosto — pareciam anunciar uma pequena mandragorazinha.
Ora, assim que — como foi dito — a mulher, vencida pelo pesar, havia caído em profundo sono, e o seu filhinho rolado até bem perto dela, ocorreu que a senhorita von Rosenschön, dama do claustro que ficava nas proximidades, vinha passando lentamente por este caminho de volta para casa após um passeio. Ela deteve-se e, dado que era de natureza terna e compassiva, ficou comovida pela cena de miséria que tinha à sua frente.
— Oh, céus — exclamou — quanta desolação e penúria existem sobre esta Terra!... Pobre e infeliz mulher! Eu sei que ela mal consegue levar a vida, e mesmo assim trabalha acima de suas forças e caiu de fome e desgosto! Quão profundamente sinto agora minha pobreza e impotência! Ah, se eu pudesse realmente ajudar como gostaria!... Mas o que ainda me restou, os poucos dons de que ainda disponho e que o destino hostil não conseguiu me arrebatar ou destruir, quero empregar com força e dedicação para combater este sofrimento. Dinheiro, ainda que eu o possuísse, em nada a ajudaria, pobre mulher, e poderia até mesmo piorar sua situação. A você e a seu marido, a vocês dois decididamente não está destinada a riqueza, e quando a riqueza não está destinada a alguém, as moedas de ouro lhe desaparecem do bolso sem que ele próprio saiba como, não lhe trazendo senão grandes dissabores, e quanto mais dinheiro lhe aflui, tanto mais pobre se torna. Mas eu sei que, mais do que toda a pobreza, mais do que todo o infortúnio, o que está atormentando seu coração é o fato de ter dado à luz este pequeno monstrinho que se escora em você como uma carga maligna e temível, que você é forçada a carregar pela vida afora. Alto... belo... forte... inteligente, não, nada disso o menino vai mesmo se tornar, mas talvez ele ainda possa ser ajudado de outro modo...
Com isto ela sentou-se na relva e tomou o pequeno ao colo. A maldosa mandragorazinha esperneou e debateu-se, rosnou e quis morder o dedo da senhorita von Rosenschön, mas esta lhe disse:
— Calma, calma, pequena joaninha! — enquanto lhe passava a palma da mão leve e suavemente ao longo da cabeça, desde a testa até a nuca.
Durante esta carícia, o cabelo desgrenhado do pequeno foi-se alisando aos poucos até cair, repartido e bem alinhado à testa, em belos cachos macios sobre os ombros altos e as costas de abóbora. O pequeno foi se acalmando cada vez mais até, por fim, adormecer profundamente. Nesse momento a senhorita Rosenschön deitou-o cuidadosamente na relva bem ao lado da mãe, respingou nela um pouco de água de cheiro do frasco de perfume que havia retirado da bolsa, e afastou-se com passos rápidos.
Quando pouco depois a mulher acordou, sentia-se maravilhosamente refrescada e fortalecida. Tinha a impressão de ter feito uma boa refeição e tomado um bom gole de vinho.
— Ai — exclamou — quanto consolo, quanta disposição este bocadinho de sono me trouxe!... Mas o sol já quase se pôs atrás das montanhas, temos agora que ir para casa!...
A seguir, a mulher ia atar o cesto às costas, mas, ao olhar para dentro dele, notou a falta do pequeno, o qual nesse mesmo instante se erguia da relva choramingando. Quando a mãe voltou os olhos em sua direção, bateu palmas de admiração e exclamou:
— Zacarias... Pequeno Zacarias, mas quem foi que nesse meio tempo penteou seu cabelo de maneira tão bonita? Zacarias... Pequeno Zacarias, como estes cachos lhe ficariam bem se não você fosse um menino tão horrívelmente feio!... Bem, agora venha, venha!... Para dentro do cesto!
Ela ia pegá-lo para estendê-lo sobre a lenha, mas o Pequeno Zacarias esperneou, fez uma careta para a mãe e miou de modo bem audível:
— Não quero!
— Zacarias!... Pequeno Zacarias — gritou a mãe fora de si — mas quem foi que nesse meio tempo ensinou você a falar? Ora, se você tem o cabelo tão bem penteado, se você sabe falar tão bem, então com certeza também saberá andar.
De um golpe a mulher recolocou o cesto às costas, o Pequeno Zacarias enganchou-se em seu avental, e assim seguiram rumo à aldeia.
Para chegar lá, tinham que passar em frente à casa do pároco, e ocorreu que este se encontrava à porta com o seu filho mais novo, um lindo garoto de três anos de idade, com belos cachos dourados. Quando o pároco viu a mulher aproximando-se com o pesado cesto de lenha e o Pequeno Zacarias pendurado em seu avental, exclamou em sua direção:
— Boa tarde, senhora Liese, como tem passado? Mas a senhora recolheu um fardo pesado demais e mal consegue seguir em frente. Venha, descanse um pouco neste banco em frente à minha porta, minha criada virá oferecer-lhe uma bebida refrescante!
Liese não esperou que ele lhe dissesse isso duas vezes e, baixando seu cesto, estava prestes a abrir a boca para queixar-se àquele respeitável senhor de toda a sua miséria e infortúnio, quando o Pequeno Zacarias, que perdera o equilíbio com o brusco movimento da mãe, foi lançado aos pés do pároco. Este abaixou-se rapidamente e ergueu o pequeno enquanto dizia:
— Ai, senhora Liese, mas que menino lindo e adorável a senhora tem aí. É uma verdadeira bênção dos céus possuir um filho tão maravilhoso — e, com isso, tomou o pequeno nos braços e acariciou-o, não parecendo de modo algum notar que o malcriado Pequeno Polegar rosnava e miava de forma muito desagradável e até tentava morder o respeitável senhor no nariz.
Liese, no entanto, estava completamente atônita diante do clérigo e fitava-o com olhos escancarados e imóveis, não sabendo o que deveria pensar:
— Ah, prezado senhor pároco — começou por fim a dizer com voz chorosa — um homem de Deus, como o senhor, com certeza não estará escarnecendo de uma pobre e infeliz mulher, a quem o céu, por motivos que apenas ele mesmo conhece, castigou com este abominável monstro!
— Mas — replicou o sacerdote em um tom muito sério — mas que bobagens são essas, cara senhora! Escárnio, monstro, castigo do céu... Não consigo absolutamente entendê-la, e sei apenas que a senhora deve estar totalmente cega se não ama seu belo menino de todo o coração... Beije-me, gentil homenzinho!
O pároco abraçou o pequeno, mas Zacarias rosnou:
— Não quero! — e investiu novamente contra o nariz do sacerdote.
— Veja a besta maligna! — exclamou Liese assustada.
Mas neste momento o filho do pároco disse:
— Ah, querido pai, o senhor é tão bondoso, o senhor é tão gentil com as crianças que todas elas certamente o amam do fundo do coração!
— Oh, ouça só — exclamou o pároco com os olhos brilhando de alegria — oh, ouça só, senhora Liese, o belo e inteligente menino, seu querido Zacarias, ao qual a senhora quer mal. Já percebo, a senhora nunca irá ligar para ele, não importa quão formoso e inteligente ele seja. Ouça, senhora Liese, entregue-me seu filho tão promissor para que eu o crie e eduque. Dada a sua opressora pobreza, o menino apenas lhe será um peso, e para mim será uma satisfação criá-lo como meu próprio filho!
Liese não conseguia voltar a si de tão atônita, e seguia repetindo:
— Mas prezado senhor pároco... senhor pároco, será que o senhor está mesmo dizendo seriamente que quer tomar para si a pequena deformidade, criá-la, e libertar-me da penúria que me traz esse monstro?
No entanto, quanto mais a mulher descrevia ao pároco a abominável feiúra de sua mandragorazinha, tanto mais fervorosamente este afirmava que ela, na sua louca cegueira, não merecia de modo algum ter recebido do céu a prodigiosa dádiva de um garoto tão maravilhoso; até que, por fim, totalmente enraivecido, entrou em casa com o Pequeno Zacarias ao colo e trancou a porta por dentro.
Lá ficou então Liese, como que petrificada, diante da porta do pároco, não sabendo o que pensar de tudo aquilo.
— Cáspite — disse a si mesma — o que terá acontecido com o nosso digno senhor pároco para que ele ficasse tão enlouquecido pelo meu Pequeno Zacarias a ponto de tomar o tolo fedelho por um menino belo e inteligente? Bem, que Deus ajude o bondoso homem; ele tirou o peso das minhas costas e tomou para si o fardo, ele que veja agora como conseguirá carregá-lo! Ah! Como o cesto de lenha agora ficou leve, já que não está mais sentado em cima dele o Pequeno Zacarias e, com ele, a maior das preocupações!
Em seguida Liese, com o cesto de lenha às costas, tomou o seu caminho alegre e bem disposta!
Mesmo que por ora eu ainda quisesse silenciar totalmente sobre o assunto, com certeza você, amigo leitor, já terá suspeitado de que deve haver alguma circunstância fora do comum envolvendo a reclusa von Rosenschön, ou Rosengrünschön, como ela também se chamava. Pois o fato de que o Pequeno Zacarias tenha sido tomado pelo bondoso pároco como uma criança bela e inteligente, sendo logo adotado como um filho, não foi certamente senão o misterioso efeito de ela ter acariciado sua cabeça e alisado seus cabelos. Ainda assim, prezado leitor, você poderia, não obstante a sua excelente perspicácia, entregar-se a falsas suposições ou, até mesmo, em grande detrimento de nossa história, saltar várias páginas para de imediato ficar sabendo mais acerca da misteriosa dama; sendo assim, é melhor sem dúvida que eu conte logo tudo o que eu mesmo sei sobre a digna donzela.
A senhorita von Rosenschön era de estatura alta, porte nobre e majestoso, e temperamento um pouco altivo e imperioso. Embora fôssemos imediatamente levados a considerá-lo muito formoso, seu rosto, em especial quando ela, como de costume, olhava fixamente à sua frente com seriedade e obstinação, causava uma impressão estranha, quase assustadora, o que se devia sobretudo a um traço bastante estranho e particular entre as sobrancelhas, do qual não se saberia muito bem se de fato uma nobre donzela reclusa poderia ostentá-lo na testa. Por outro lado — notadamente na época de floração das rosas, em dias claros e de bom tempo — também havia freqüentemente tanta benevolência e graça em seu olhar que todos se sentiam cativados por uma doce e irresistível magia. Quando tive a honra de ver a nobre senhorita pela primeira e última vez, ela era, pelas aparências, uma mulher que alcançara o pleno desabrochamento de seus anos, o ponto culminante antes do retrocesso, e eu supus ter sido premiado pela sorte por ainda ter podido ver a dama neste apogeu e assustar-me, de certo modo, com a sua maravilhosa beleza, o que muito em breve provavelmente não mais ocorreria. Mas eu estava enganado. As pessoas mais idosas da aldeia asseguraram-me de que conheciam a nobre donzela há tanto tempo quanto conseguiam recordar-se, e de que a dama nunca tivera outra aparência, nem mais velha nem mais jovem, nem mais feia nem mais bonita do que tal como agora. O tempo, portanto, não parecia ter poder sobre ela, e só isso já poderia causar estranheza a muitos. Mas havia ainda muitas outras coisas com as quais qualquer um, se refletisse seriamente sobre elas, igualmente se espantaria, a ponto de, por fim, certamente não conseguir desvencilhar-se do assombro no qual se encontraria emaranhado. Para começar, revelava-se na moça o parentesco com as flores cujo nome ela trazia. Pois não apenas ninguém no mundo era capaz, como ela, de cultivar rosas tão esplêndidas, com milhares de pétalas, como também aquelas flores brotavam na maior abundância e na forma mais soberba do pior e mais seco espinho que ela houvesse enfiado no solo. Fora isso, sabia-se com certeza que, durante passeios solitários na floresta, ela mantinha sonoras conversas com vozes misteriosas que pareciam provir das árvores, dos arbustos, das fontes e regatos. Um jovem caçador até mesmo a tinha espreitado quando certa vez ela se encontrava no interior da mais cerrada mata, e estranhos pássaros de plumagem colorida e brilhante, que absolutamente não haviano reino, esvoaçavam em torno dela e a acariciavam, e, com alegres cantos e gorjeios, pareciam contar-lhe uma variedade de coisas divertidas, com o que ela ria e ficava contente. Isto explica porque a senhorita von Rosenschön, quando chegou para morar no claustro, não tardou a chamar a atenção de todos na região. Sua admissão no estabelecimento para moças nobres tinha se dado por ordem do Príncipe, motivo pelo qual o barão Prätextatus von Mondschein, dono da propriedade em cuja proximidade se localizava aquele estabelecimento, do qual ele era administrador, não pôde opor-se, muito embora fosse acometido pelas mais terríveis incertezas. Pois resultaram inúteis os seus esforços para encontrar a família Rosengrünschön no Livro de Justas de Rixner e em outras crônicas. Em vista disso, era com razão que ele punha em dúvida o direito da moça — que não podia apresentar uma árvore genealógica com trinta e dois antepassados — de ser admitida no estabelecimento, e suplicou-lhe por fim, todo contrito e com lágrimas nos olhos, que pelo amor de Deus ao menos não usasse o nome Rosengrünschön, mas Rosenschön, pois neste último ainda havia algum bom senso e a possibilidade de um antepassado. Ela assim o fez para agradá-lo. Talvez o magoado Prätextatus manifestasse seu rancor contra a moça sem antepassados de uma ou outra maneira, dando origem aos maledicentes falatórios que se espalhavam mais e mais pela aldeia. Pois àquelas conversas mágicas na floresta, que todavia não eram de maior importância, acrescia-se uma série de circunstâncias suspeitas, que passavam de boca em boca e mostravam a verdadeira natureza da moça sob uma forma equivocada. Mãe Anne, a mulher do alcaide, afirmava resolutamente que, sempre quando a senhorita espirrava com força em direção à janela, o leite de toda a aldeia azedava. Mal isso se tinha confirmado quando se deu o terrível incidente. Michel, o filho do mestre-escola, estava furtando batatas assadas no cabido e foi surpreendido pela reclusa que, sorrindo, ameaçou-o com o dedo. A boca do menino permaneceu aberta, exatamente como se ele continuamente aí tivesse uma batata assada em brasa, e, a partir de então, ele se viu obrigado a usar um chapéu com uma aba larga e saliente, pois, caso contrário, a chuva cairia na boca do infeliz. Logo espalhou-se a convicção de que a senhorita Rosenschön sabia conjurar fogo e água, agregar nuvens de tempestade e granizo, espalhar a plica polônica, etc., e ninguém duvidou da declaração do pastor de ovelhas que alegava ter visto, com calafrios de pavor, como a senhorita voava zunindo pelos ares em uma vassoura, à meia-noite, tendo à sua frente um monstruoso cervo voador de cujas antenas subiam altas chamas azuis! Todos então se alvoroçaram, querendo prender a feiticeira, e os tribunais da aldeia decidiram nada menos que arrancar a moça do claustro e atirá-la na água para que fosse submetida ao costumeiro teste das bruxas. O barão Prätextatus permitiu que tudo isso acontecesse e disse sorrindo para si mesmo:
— Isso é o que acontece a pessoas simplórias sem antepassados e que não têm uma linhagem tão boa como a dos Mondschein.
A reclusa, informada acerca dos abusos que a ameaçavam, refugiou-se na capital, e logo a seguir o barão Prätextatus recebeu uma ordem do gabinete do Príncipe do reino, pela qual era notificado da inexistência de bruxas e recebia a ordem de lançar ao calabouço os magistrados da aldeia pelo seu impertinente desejo de contemplar as habilidades natatórias de uma reclusa, e a recomendação de insinuar aos demais camponeses e suas mulheres, com a ameaça de um vigoroso castigo corporal, que não pensassem mal da senhorita Rosenschön. Todos caíram em si, ficaram com medo da punição com que tinham sido ameaçados e passaram desde então a pensar bem da moça, o que para ambas as partes, tanto a aldeia como a senhorita Rosenschön, teve as mais benéficas conseqüências.
No gabinete do príncipe sabia-se muito bem que a senhorita von Rosenschön não era ninguém menos do que a fada Rosabelverde, outrora famosa e conhecida no mundo inteiro. A história por detrás de todo este caso é a seguinte:
Em toda a vasta Terra provavelmente seria difícil encontrar um lugar mais charmoso do que o pequeno principado no qual se situava a propriedade do barão Prätextatus von Mondschein, no qual residia a senhorita von Rosenschön e, em resumo, no qual se passou tudo isso que eu, meu estimado leitor, pretendo contar-lhe em detalhes.
Cercado de altas montanhas, o pequeno reino, com suas florestas verdes e perfumadas, suas campinas floridas, seus rios rumorejantes e alegres fontes a borbulhar, assemelhava-se — sobretudo pelo fato de não haver cidades, mas apenas aprazíveis aldeias e, aqui e acolá, alguns poucos palácios isolados — a um jardim esplêndido e maravilhoso, no qual os moradores caminhavam como que por puro prazer, livres de todo o fardo que pesa sobre a existência. Todos sabiam que o príncipe Demetrius conduzia o reino; ninguém, entretanto, notava a menor interferência do governo, e todos estavam plenamente satisfeitos com a situação. Pessoas que amavam a liberdade plena em todos os seus afazeres, uma bela região, um clima ameno, não poderiam escolher uma morada melhor do que este principado; e foi assim que, entre outros, diversas excelentes fadas, do tipo benevolente, que notoriamente prezam o calor e a liberdade acima de tudo, lá também se estabeleceram. A elas devia provavelmente ser atribuído o fato de que, em quase todas as aldeias, mas em especial nas florestas, ocorriam amiúde os mais agradáveis prodígios, e que todos, imersos no encantamento desses prodígios, acreditavam plenamente no maravilhoso e, mesmo sem sabê-lo, exatamente por isso permaneciam cidadãos alegres e, com isso, bons. As boas fadas, que lá se instalaram a seu bel-prazer tal como se estivessem no Djinistão, de boa vontade teriam conferido ao excelente Demetrius uma vida eterna. Isso, entretanto, não estava em seu poder. Demetrius faleceu e foi sucedido no governo pelo jovem Paphnutius. Este, ainda durante a vida de seu digno pai, alimentara em seu íntimo um secreto pesar pelo fato de que, em sua opinião, o povo e o Estado estavam sendo negligenciados e relegados ao abandono da maneira mais escabrosa. Ele decidiu governar, e nomeou imediatamente para Primeiro Ministro do reino o seu valete de quarto Andres, que uma vez lhe emprestara seis ducados quando o Príncipe esqueceu sua bolsa em uma estalagem, tirando-o assim de um apuro.
— Eu quero governar, meu caro! — disse-lhe Paphnutius.
Andres leu nos olhares de seu senhor o que se passava em seu íntimo, e jogou-se a seus pés, dizendo solenemente:
— Senhor! O grande momento chegou!... Por seu intermédio um reino se ergue fulgurante do tenebroso caos!... Senhor! Aqui implora o mais leal dos vassalos, tendo em seu peito e boca as milhares de vozes do pobre povo infeliz!... Senhor... Introduza o Iluminismo!
Paphnutius sentiu-se profundamente comovido com a sublime idéia de seu ministro. Erguendo-o do chão, apertou-o tempestuosamente contra o peito e disse soluçando:
— Ministro... Andres... eu lhe devo seis ducados... mais ainda... minha felicidade... meu reino!... Oh, fiel e inteligente servidor!...
Paphnutius quis de imediato mandar imprimir em letras grandes e afixar por todos os cantos um edital informando que, a partir de então, o Iluminismo estava introduzido e que todos teriam que se guiar por ele.
— Excelentíssimo senhor! — disse Andres no entanto — Excelentíssimo senhor! Assim não vai funcionar!
— Mas então, meu caro, como poderia funcionar? — disse Paphnutius, e agarrou seu ministro pela lapela, puxando-o para o interior do gabinete cuja porta trancou.
— Veja — começou Andres depois de assentar-se em um pequeno tamborete em frente ao Príncipe — veja, gracioso senhor! O resultado de seu édito principesco sobre o Iluminismo talvez venha a sofrer uma desagradável interferência se nós não o associarmos a uma medida que, muito embora pareça severa, é ditada pela prudência. Antes de darmos prosseguimento ao Iluminismo, isto é, antes de mandarmos abater as florestas, tornar os rios navegáveis, cultivar batatas, melhorar as escolas dos vilarejos, plantar acácias e choupos, fazer os jovens entoarem a duas vozes seus cantos matinais e vespertinos, construir estradas, aplicar a vacina contra a varíola, é necessário banir todos os indivíduos de convicções perigosas que não dão ouvidos à razão e que seduzem o povo com uma leva de tolices. O senhor terá lido As Mil e Uma Noites, digníssimo Príncipe, pois eu sei que Sua Majestade, seu finado pai — que Deus lhe dê a paz na sepultura — amava este tipo de livros fatídicos e dava-lhos nas mãos quando o senhor ainda fazia uso do cavalinho-de-pau e comia douradas broinhas de mel. Pois bem! Desse livro totalmente confuso o digníssimo senhor deve conhecer as assim chamadas fadas, mas certamente não suspeitará que diversas dessas pessoas perigosas se estabeleceram aqui mesmo em seu querido reino, bem perto de seu palácio, e que provocam todo tipo de desordens.
— Como?... Que está dizendo?... Andres! Ministro!... Fadas!... Aqui em meu reino? — gritou muito pálido o Príncipe, deixando-se afundar contra o encosto da cadeira.
— Ficaremos calmos, meu digníssimo senhor! — continuou Andres. — Ficaremos calmos tão logo combatamos com bom senso essas inimigas do Iluminismo. Sim, eu as chamo de inimigas do Iluminismo, pois, tendo abusado da bondade do finado senhor seu pai, só elas têm a culpa de o nosso amado reino ainda se encontrar imerso completamente nas trevas. Elas se dedicam a perigosas atividades com o maravilhoso e não receiam difundir, sob o nome de poesia, um veneno secreto que torna as pessoas totalmente incapacitadas para servir ao Iluminismo. Além disso, elas têm costumes tão desagradáveis e avessos às normas da polícia, que apenas em função disso já não deveriam ser toleradas em nenhum país civilizado. Assim, por exemplo, as atrevidas têm a ousadia de, sempre que lhes dá na veneta, passear pelos ares atreladas a pombas, cisnes, até mesmo cavalos alados. Mas eu pergunto agora, digníssimo senhor, vale a pena o esforço para criar e implantar um elaborado sistema de impostos incidentes se houver pessoas no reino em condições de atirar mercadorias, como bem lhes aprouver, pela chaminé de qualquer cidadão inconseqüente, sem pagar o imposto? Por isso, digníssimo senhor, assim que for anunciado o Iluminismo, fora com as fadas! Seus palácios serão cercados pela polícia, seus perigosos bens serão confiscados e elas serão expulsas como vagabundos para a sua pátria, a qual, como o prezadíssimo senhor deve conhecer das Mil e uma noites, é o pequeno país chamado Djinistão.
— A carruagem do correio chega até esse país, Andres? — perguntou o Príncipe.
— Até o momento, não — retrucou Andres — mas após a introdução do Iluminismo talvez se possa organizar com proveito um correio diário para lá.
— Mas Andres — continuou o Príncipe — nosso procedimento contra as fadas não será porventura considerado demasiado severo? O povo, mal-acostumado, não irá queixar-se?
— Também para isso — disse Andres — também para isso eu conheço um remédio. Nem todas as fadas, digníssimo senhor, serão deportadas para o Djinistão, algumas nós conservaremos no reino, mas não apenas vamos despojá-las de todos os meios de prejudicar o Iluminismo como usaremos dos recursos apropriados para transformá-las em membros úteis do Estado esclarecido. Caso elas não queiram consentir em sólidos casamentos, poderão dedicar-se, sob estrita vigilância, a alguma atividade útil, tal como tricotar meias para o exército em tempos de guerra, ou algo desse tipo. Note, digníssimo senhor, que as pessoas rapidamente deixarão de acreditar em fadas quando elas passarem a caminhar em seu meio, e isto é que é o melhor. Assim cessarão por si mesmas as queixas eventuais. Ademais, quanto aos apetrechos das fadas, eles irão para o Tesouro do principado; as pombas e cisnes serão entregues à cozinha principesca como deliciosos assados, com os cavalos alados poder-se-á tentar domesticá-los e torná-los bestas úteis, cortando suas asas e submetendo-os à alimentação em estábulos, os quais, espero, serão introduzidos com o Iluminismo.
Paphnutius ficou satisfeitíssimo com todas as sugestões de seu ministro, e já no dia seguinte pôs-se em prática tudo o que fora decidido.
Em todos os cantos foi afixado o édito referente ao Iluminismo, ao mesmo tempo em que a polícia invadia os palácios das fadas, confiscava seus bens e levava-as como prisioneiras.
Só os céus sabem como pôde acontecer que a fada Rosabelverde tenha sido a única de todas que, poucas horas antes da irrupção do Iluminismo, foi informada a respeito e empregou o tempo para libertar seus cisnes e colocar suas roseiras e outras preciosidades em segurança. Pois ela também soube que fora escolhida para permanecer no país, ao que aquiesceu, embora de má vontade.
Aliás, nem Paphnutius nem Andres puderam compreender por que as fadas que eram transportadas para o Djinistão expressavam uma alegria tão exagerada e repetiam uma vez atrás da outra que não se incomodavam minimamente com as propriedades que eram obrigadas a deixar para trás.
— Vai ver — disse Paphnutius indignado — vai ver que o Djinistão é um reino muito mais bonito do que o meu, e elas se riem às minhas custas, até de meu édito e de meu Iluminismo. Mas agora sim é que ele deverá ter pleno êxito!
O geógrafo e o historiador do reino foram encarregados de elaborar um relato minucioso acerca do país.
Ambos concordaram que o Djinistão era um país deplorável, sem cultura, Iluminismo, erudição, acácias e varíola, e, na verdade, nem sequer existia. Com certeza, nada de pior poderia ocorrer a uma pessoa, ou a um país inteiro, do que não existir.
Paphnutius sentiu-se tranquilizado.
Quando foi derrubado o belo arvoredo florido no qual ficava o palácio abandonado da fada Rosabelverde e quando, para dar o exemplo, Paphnutius em pessoa aplicou em todos os moleques do povoado mais próximo a vacina contra varíola, a fada ficou à espreita do Príncipe na floresta pela qual ele e o ministro Andres deveriam passar de volta a seu castelo. Então, com toda sorte de palavras gentis — mas especialmente com alguns assustadores passes de mágica que ela conseguira ocultar da polícia — ela o encurralou de tal forma que o Príncipe pediu-lhe pelo amor de Deus que se desse por satisfeita com uma vaga no único e, portanto, o melhor estabelecimento de reclusão para moças nobres de todo o reino, onde ela poderia viver e agir como bem quisesse, sem importar-se com o édito do Iluminismo.
A fada Rosabelverde aceitou a proposta e desse modo ingressou no estabelecimento de reclusão, no qual, como já foi narrado, ela assumiu o nome von Rosengrünschön, e mais tarde, atendendo às súplicas do barão Prätextatus von Mondschein, tornou-se a senhorita von Rosenschön.
Segundo Capítulo
Do povo desconhecido que o erudito Ptolomäus Philadelphus descobriu durante suas viagens — A Universidade de Kerepes — Como um par de botas de montaria voou em torno da cabeça de Fabian e o Professor Mosch Terpin convidou o estudante Balthasar para o chá.
Das afetuosas cartas que o mundialmente conhecido erudito Ptolomäus Philadelphius escrevia ao seu amigo Rufin quando se encontrava em suas longas viagens consta a singular passagem a seguir:
"Você sabe, meu querido Rufin, que não há nada que eu tema e receie mais do que os ardentes raios solares do dia, os quais consomem as forças do meu corpo e afrouxam e fatigam de tal modo o meu espírito que todos os pensamentos confluem em um quadro desordenado, e é em vão que luto por formar alguma imagem precisa em minha mente. Por isso, nesta estação quente, tenho o hábito de descansar durante o dia, enquanto à noite prossigo em minha viagem, e foi assim que me encontrava viajando também na noite passada. Em meio à profunda escuridão, meu cocheiro extraviou-se do caminho correto e conveniente, desembocando de súbito em uma estrada de cascalho. Muito embora fosse atirado para lá e para cá dentro do carro pelos violentos solavancos — a ponto de minha cabeça cheia de galos mais parecer-se a um saco repleto de nozes — só acordei do profundo sono no qual estava mergulhado quando um terrível abalo arrojou-me para fora do carro sobre o chão duro. O clarão do sol atingiu em cheio meu rosto e, através da barreira levadiça imediatamente à minha frente, avistei as altas torres de uma imponente cidade. O cocheiro prorrompeu em lamentações pois não apenas a lança como também uma roda traseira do carro tinham-se quebrado contra uma grande pedra que havia no meio da estrada, e parecia preocupar-se pouco ou mesmo nada comigo. Reprimi minha cólera, como convém a um sábio, e apenas bradei mansamente ao vilão que ele era um maldito sacripanta e disse-lhe que ponderasse o fato de Ptolomäus Philadelphus, o mais famoso erudito de seu tempo, estar sentado com a b... no chão, e que mandasse às favas a lança e a roda. Você bem conhece, meu querido Rufin, o poder que eu exerço sobre o coração humano, e assim aconteceu de fato que o cocheiro imediatamente parou de lamentar-se e, com o auxílio do cobrador da barreira, em frente de cuja casa se dera o acidente, ajudou-me a ficar em pé. Por sorte eu não sofrera nenhum dano mais sério, estando em condições de caminhar lentamente pela estrada enquanto o cocheiro seguia-me, arrastando com esforço o carro quebrado. À pouca distância do portão da cidade que eu avistara ao longe no horizonte azulado, deparei-me com uma multidão de pessoas de maneiras tão extravagantes e com roupas tão estranhas que esfreguei meus olhos para verificar se realmente estava acordado ou se um sonho disparatado e zombeteiro não me teria porventura acabado de transportar para um desconhecido país de fábula... Estas pessoas, que eu podia razoavelmente supor que eram os habitantes da cidade de cujo portão eu as via sair, usavam pantalonas longas, bem largas e cortadas ao estilo japonês — feitas de custosos materiais: veludo, veludo de Manchester, um tecido fino ou mesmo linho entremeado de fios coloridos — e guarnecidas abundantemente de galões ou vistosas fitas e cordões; a isso acresciam-se pequenas jaquetas de criança que mal chegavam abaixo da cintura, em geral de cores bem claras, só algumas poucas sendo pretas. Os cabelos caíam despenteados em natural desordem sobre os ombros e as costas, e na cabeça portavam um pequeno e estranho gorrinho. Alguns tinham o pescoço totalmente descoberto à maneira dos turcos e gregos modernos, outros, ao contrário, usavam em torno do pescoço e do peito uma pequena peça de linho branco parecendo quase uma gola de camisa, como você, meu querido Rufin, provavelmente já viu em quadros de nossos antepassados. Se bem que essas pessoas parecessem todas muito jovens, sua linguagem era grave e rude, e todos os seus movimentos desajeitados, tendo vários deles uma sombra estreita abaixo do nariz, como se lá houvesse um bigode de pontas levantadas. Muitos tinham, saindo da traseira de seus pequenos casacos, um longo tubo do qual pendiam grandes borlas de seda. Outros haviam retirado estes tubos e atado na sua parte inferior cabaças — pequenas um pouco maiores ou às vezes bastante grandes e de formatos bizarros — das quais eles habilmente sabiam fazer sair nuvens artificiais de vapor, soprando por cima através de um tubinho que terminava em uma ponta extremamente fina. Outros levavam nas mãos espadas largas e reluzentes como se quisessem lançar-se contra o inimigo; outros ainda tinham pendurados nos ombros ou amarrados às costas pequenos recipientes de couro ou folha de Flandres. Você pode muito bem imaginar, meu querido Rufin, que eu, sempre procurando enriquecer meus conhecimentos através de uma cuidadosa observação de todos os novos fenômenos, fiquei estatelado e de olhos fixos nessas estranhas pessoas. Elas se agruparam então ao meu redor gritando com força: "Filisteu... Filisteu!", prorrompendo em uma horrível gargalhada... Isto me deixou muito aborrecido. Pois, querido Rufin, haveria algo mais ofensivo para um grande erudito do que ser tomado por membro de um povo que há muitos milhares de anos foi abatido a golpes de uma queixada de asno? Controlei-me, com minha dignidade inata, e disse em voz bem alta ao estranho povo à minha volta que eu esperava encontrar-me em um lugar civilizado, e que iria dirigir-me à polícia e aos tribunais para vingar o insulto que me fora dirigido. Nesse momento todos eles passaram a resmungar, e mesmo aqueles que até então ainda não haviam soltado vapor tiraram dos bolsos as máquinas destinadas a esse fim e todos sopraram em meu rosto as grossas nuvens de fumaça que, como só então fui perceber, tinha um cheiro totalmente insuportável que atordoava meus sentidos. A seguir, eles lançaram contra mim uma espécie de maldição, cujas palavras, meu prezado Rufin, eu não quero repetir-lhe, por serem de tal forma medonhas. Eu mesmo só consigo pensar nelas com profundo horror. Finalmente eles me deixaram, debaixo de fortes gargalhadas de escárnio, e eu tive a impressão de ouvir desvanecendo nos ares as palavras "golpes de azorrague". Meu cocheiro, que igualmente ouvira e presenciara tudo, torceu as mãos e disse: "Ah, meu prezado senhor, agora que aconteceu o que aconteceu, não entre de jeito nenhum naquela cidade! Como se diz, nem mesmo um cão aceitaria um pedaço de pão de suas mãos, e o senhor estaria permanentemente ameaçado pelo perigo de ser surr..." Não permiti que o bravo homem terminasse de falar e dirigi meus passos o mais rápido que pude em direção à aldeia mais próxima. Escrevo-lhe tudo isto, meu querido Rufin, sentado no solitário quartinho da única estalagem desta aldeia!... Na medida do possível, vou recolher informações sobre o estranho povo bárbaro que habita aquela cidade. Sobre seus costumes, hábitos, sobre sua língua, etc., eu já consegui que me fossem narradas coisas extremamente singulares e vou contar-lhas fielmente etc., etc."
Como você pode perceber, oh, meu prezadíssimo leitor, alguém pode ser um grande erudito sem ter o menor conhecimento de fatos muito comuns da vida, e entregar-se aos sonhos mais bizarros a respeito de coisas universalmente conhecidas. Ptolomäus Philadelphus tinha estudado na universidade e nem ao menos conhecia estudantes; e não tinha a menor idéia de que, enquanto escrevia a seu amigo sobre um acontecimento que em sua cabeça se transformara em uma aventura das mais inusitadas, estava instalado na aldeia de Hoch-Jakobsheim, a qual, como todos sabem, fica bem próxima à famosa Universidade de Kerepes. O bom Ptolomäus assustou-se ao se deparar com estudantes que prazeirosamente passeavam alegres e bem dispostos pelos campos. Que medo, então, não o teria assaltado caso houvesse chegado a Kerepes uma hora mais cedo e se o acaso o tivesse conduzido para diante da casa de Mosch Terpin, o professor de Ciências Naturais! Centenas de estudantes jorrando para fora teriam-no rodeado em meio a ruidosas disputas etc., e fantasias ainda mais extravagantes assaltariam sua imaginação como resultado dessa confusão, desse tropel.
Pois as aulas de Mosch Terpin eram as mais freqüentadas em toda Kerepes. Ele era, como foi dito, Professor de Ciências Naturais; explicava como chove, troveja, relampeja, por que o Sol brilha durante o dia e a Lua à noite, como e por que a relva cresce, etc., de tal forma que qualquer criança forçosamente o compreenderia. Ele tinha comprimido toda a Natureza em um pequeno e gracioso compêndio de modo a poder comodamente manuseá-la à vontade e retirar dali, como de uma gaveta, a resposta para toda e qualquer pergunta. Seu renome havia inicialmente se estabelecido quando, depois de muitos experimentos físicos, ele teve êxito na descoberta de que a escuridão provém principalmente da ausência de luz. Isto, bem como o fato de que ele sabia converter com muita destreza aqueles experimentos físicos em graciosos espetáculos, e de que praticava divertidas artes de prestidigitação, proporcionavam-lhe aquela incrível afluência. Permita-me, meu benévolo leitor, já que você conhece os estudantes bem melhor do que o famoso erudito Ptolomäus Philadelphus, já que você não compartilha do seu temor fantasioso, que eu o conduza agora para Kerepes, para diante da casa do Professor Mosch Terpin, no momento em que ele acaba de concluir sua aula. Dentre os estudantes jorrando em massa para a rua, há um que cativa imediatamente a sua atenção. Você vê um rapaz formoso, de vinte e três a vinte e quatro anos, em cujos olhos escuros e brilhantes se expressa com eloqüência um vivaz e proeminente espírito interior. Seu olhar quase poderia ser qualificado de ousado, não fosse a sonhadora tristeza que, do modo como se estendia por todo o semblante pálido, assemelhava-se a um véu ocultando os raios ardentes. Seu casaco, de fino tecido preto guarnecido de veludilho, está cortado aproximadamente segundo o antigo feitio alemão, e combina muito bem com a delicada gola de renda resplandecente de brancura, bem como com o barrete de veludo assentado sobre os belos cachos castanhos. Esta vestimenta lhe cai especialmente bem porque ele parece — de acordo com toda a sua natureza, seu decoro no andar e na postura, os traços expressivos de seu rosto — pertencer realmente a um passado belo e inocente e, precisamente por isso, não se deve pensar naquela afetação que surge com freqüência da imitação mesquinha de modelos mal-interpretados para curvar-se a exigências da nossa época, igualmente mal-interpretadas. Este jovem que lhe agrada tanto à primeira vista, amado leitor, não é ninguém mais do que o estudante Balthasar, filho de gente decente e abastada, jovem puro, inteligente, aplicado, de quem pretendo, oh meu leitor, falar-lhe longamente na história que me propus a narrar.
Balthasar deixou a aula do Professor Mosch Terpin e vagou, sério e perdido em pensamentos — como era do seu feitio — rumo ao portão da cidade para dirigir-se, não à quadra de esgrima, mas à adorável florestazinha que dista de Kerepes nem bem umas poucas centenas de passos. Seu amigo Fabian, um belo rapaz de aparência vivaz e disposição análoga, correu em seu encalço e alcançou-o bem próximo ao portão.
— Balthasar! — chamou Fabian bem alto — Balthasar, com que então você quer embrenhar-se novamente na floresta e vagar sozinho como um filisteu melancólico, enquanto rapazes vigorosos se exercitam com galhardia na nobre arte da esgrima!... Eu lhe peço, Balthasar, deixe de uma vez esses seus modos lúgubres e tolos e volte a ser alegre e jovial como era outrora. Venha! Vamos treinar alguns assaltos de esgrima e, se depois disso você ainda quiser sair, então eu irei com você.
— Você tem boas intenções — replicou Balthasar — você tem boas intenções, Fabian, e por isso eu não quero zangar-me consigo por me seguir às vezes, como um possesso, por onde quer que eu ande, estragando muitos prazeres dos quais você não tem a menor idéia. É fato consumado que você pertence àquele estranho tipo de pessoas que tomam todos os que elas vêem vagando solitários por tolos melancólicos, e querem logo tratá-los e curá-los à sua maneira, como aquele cortesão quis fazer com o digno príncipe Hamlet, que deu-lhe uma boa lição no momento em que o homenzinho confessou não saber tocar flauta. Desejo poupá-lo disso, caro Fabian, mas, de resto, gostaria de pedir-lhe do fundo do coração que procure outro companheiro para sua nobre esgrima com floretes e espadas, e que me deixe seguir vagando tranqüilamente pelo meu caminho.
— Não, não — exclamou Fabian rindo — assim você não me escapa, meu caro amigo! Se você não quiser ir comigo à quadra de esgrima, então eu o acompanharei à pequena floresta. É obrigação do amigo fiel alegrá-lo na sua tristeza. Venha, querido Balthasar, venha, se é isso que você quer.
Com isso, tomou o amigo pelo braço e saiu caminhando vigorosamente com ele. Intimamente enfurecido, Balthasar cerrou os dentes e conservou-se em um silêncio taciturno, enquanto Fabian contava de um só fôlego um rol inesgotável de coisas divertidas. Também foram ditas muitas tolices, o que sempre costuma acontecer ao se narrar de um só fôlego coisas divertidas.
Quando finalmente adentraram as frescas sombras da floresta perfumada, quando os arbustos sussurraram como em saudosos suspiros, quando as maravilhosas melodias dos riachos rumorejantes e as canções dos pássaros soaram, espalhando-se para longe e despertando os ecos que respondiam vindos das montanhas, Balthasar parou de súbito e, estendendo os braços até que ficassem bem abertos, como se quisesse envolver amorosamente com eles as árvores e as moitas, exclamou:
— Agora me sinto bem novamente!... Indescritivelmente bem!
Fabian olhou um pouco perplexo para o amigo, como alguém que não consegue entender o que foi dito, ou não sabe como reagir. Balthasar tomou-o então pela mão e exclamou, cheio de arrebatamento:
— Não é verdade, irmão, que agora o seu coração também se abre, que agora também você compreende o bem-aventurado mistério da solidão na floresta?
— Eu não o estou entendendo muito bem, querido, irmão — retrucou Fabian — mas se você acha que um passeio aqui na floresta lhe faz bem, então sou totalmente da mesma opinião. Afinal, não é verdade que também gosto de passear, especialmente em boa companhia, com a qual se pode manter uma conversa sensata e instrutiva? Assim, por exemplo, é um verdadeiro prazer andar pelos campos com o nosso Professor Mosch Terpin. Ele conhece cada plantinha, cada graminha, e sabe como se chama e em que classe se enquadra, e entende dos ventos e do tempo...
— Pare — gritou Balthasar — eu lhe suplico, pare!... Você está tocando em um ponto que me deixaria enraivecido se não houvesse um consolo em outra parte. A maneira como o Professor fala sobre a Natureza despedaça-me o coração. Ou antes, sou possuído por um inquietante pavor, como se visse um demente que, tomando-se por rei e soberano em sua parvoíce afetada, acaricia uma bonequinha de palha feita por ele mesmo e julga estar abraçando sua régia noiva! Seus assim chamados experimentos dão-me a impressão de uma abominável zombaria do Ser divino, cujo sopro, na Natureza, roça-nos a face e estimula em nosso coração os mais profundos e sagrados pressentimentos. Muitas vezes sinto-me tentado a destroçar seus frascos, suas retortas, toda a sua tralha, se não pensasse que um macaco, afinal, não cessa de brincar com fogo enquanto não queimar a pata... Veja, Fabian, esses sentimentos me angustiam, oprimem meu coração durante as aulas de Mosch Terpin, e é certo que nessas ocasiões eu devo parecer a vocês mais melancólico e misantropo do que nunca. Sinto-me então como se as casas fossem desabar sobre minha cabeça, e uma ânsia indescritível me impulsiona para fora da cidade. Mas aqui, aqui meu íntimo logo se enche de uma doce tranqüilidade. Deitado sobre a relva florida, levanto meus olhos para o amplo azul do céu e, acima de mim, acima da floresta exultante, passam nuvens douradas como magníficos sonhos provenientes de um mundo longínquo e cheio de ditosas alegrias!... Oh, Fabian, nesse momento eleva-se de dentro do meu próprio peito um espírito maravilhoso, e eu ouço como ele dita palavras misteriosas às moitas, às árvores, às vagas no riacho da floresta, e não posso expressar o deleite que então trespassa todo o meu ser em um doce e nostálgico estremecimento!
— Ai — exclamou Fabian — ai, lá vem outra vez a velha e eterna conversa de nostalgia e deleite, e árvores e regatos que falam na floresta. Todos os seus versos estão repletos dessas coisas graciosas, que até soam bem agradáveis aos ouvidos e são empregadas com proveito sempre que não se procura dar-lhes um sentido por demais profundo... Mas, meu excelentíssimo melancólico, se de fato as aulas de Mosch Terpin o ofendem e incomodam de modo tão terrível, diga-me então por que diabos você acorre a todas elas, por que você não deixa de comparecer a uma única sequer e, então sim, fica sentado mudo e rígido, com os olhos fechados como que absorto em um sonho?
— Não me pergunte — replicou Balthasar, enquanto baixava os olhos — não me pergunte sobre isso, querido amigo!... Um poder desconhecido atrai-me todas as manhãs para a casa de Mosch Terpin. Eu pressinto meu tormento e mesmo assim não posso resistir, uma sombria fatalidade me arrasta!
— Ha, ha! — riu Fabian em sonora gargalhada — ha, ha, ha, que delicado, que poético, que misterioso! O poder desconhecido que o atrai à casa de Mosch Terpin emana dos olhos azuis-escuros da bela Cândida!... Que você está apaixonado até as orelhas pela graciosa filhinha do Professor, todos nós já sabemos há muito, e por isso desculpamos as suas fantasias e seu jeito amalucado. Afinal, os apaixonados são assim mesmo. Você se encontra no primeiro estágio da doença do amor e tem que passar, nos anos mais maduros de sua mocidade, por todos os trejeitos cômicos e bizarros pelos quais nós — eu e muitos outros — passamos no tempo do colégio sem ter um grande público assistindo. Mas acredite-me, doce coração...
Fabian entrementes havia agarrado outra vez seu amigo Balthasar pelo braço e voltado a caminhar a passos rápidos. Eles acabavam de sair do espesso arvoredo alcançando o largo caminho que atravessava o coração da floresta. Nesse momento Fabian distinguiu ao longe um cavalo que, envolto em uma nuvem de poeira, vinha trotando sem cavaleiro.
— Ei! Ei! — gritou ele, interrompendo sua fala — Ei, ei, lá está um maldito rocim que fugiu em disparada e derrubou seu cavaleiro... Temos que capturá-lo e depois procurar o dono na floresta.
Assim dizendo, ele postou-se bem no meio do caminho.
O cavalo aproximava-se mais e mais, e pareceu então que duas botas de montaria balançavam-se uma de cada lado, para cima e para baixo, enquanto algo escuro se mexia e remexia sobre a sela. Logo à frente de Fabian ressoou um longo e estridente "Prrr... Prrr..." e no mesmo instante um par de botas de montaria voou-lhe em volta da cabeça, e uma coisa pequena, estranha e escura rolou por entre suas pernas. Totalmente imóvel, com o pescoço longamente esticado para frente, o cavalo farejava seu minúsculo patrãozinho, que rolava na areia e finalmente pôs-se de pé a duras penas. A cabeça do pirralho introduzia-se profundamente por entre os ombros altos; ele assemelhava-se — com a excrescência no peito e nas costas, com seu tronco curto e suas longas perninhas de aranha — a uma maçã espetada em um garfo, na qual alguém tivesse talhado uma careta. Quando Fabian viu esse pequeno e estranho monstro em pé diante de si, não conteve uma alta gargalhada. Mas o pequeno, enfiando até os olhos, zangado, o barretezinho que apanhara do chão, perguntou em um tom áspero e muito rouco, enquanto trespassava Fabian com o olhar furioso:
— É este o caminho correto para Kerepes?
— Sim, meu senhor! — respondeu Balthasar meigo e sério, e passou-lhe as botas que acabara de recolher.
Todos os esforços do pequeno para calçar as botas foram vãos; ele emborcava seguidamente e rolava na areia gemendo. Balthasar colocou de pé as duas botas juntas, levantou delicadamente o pequeno e baixou-o, enfiando os dois pezinhos nos invólucros excessivamente largos e pesados. Com modos altivos, uma mão fixa na cintura e levando a outra contra o barrete, o pequeno exclamou:
— Gratias, meu senhor! — e dirigiu-se rumo ao cavalo, tomando os arreios. Todas as tentativas para alcançar o estribo ou escalar o grande animal frustraram-se.
Balthasar, sempre sério e meigo, veio e ergueu o pequeno até os estribos. Provavelmente seu impulso foi demasiado forte, pois mal ele se assentara na sela, já estava caído do outro lado.
— Não seja tão fogoso, queridíssimo Monsieur! — exclamou Fabian, enquanto, novamente, rompia em ruidosa gargalhada.
— Ao diabo com seu queridíssimo Monsieur — berrou furioso o pequeno enquanto batia em suas roupas para tirar o pó. — Eu sou um estudante universitário e, se você também for um, então é uma afronta que esteja rindo na minha cara como um poltrão, e amanhã você terá que bater-se comigo em Kerepes!
— Caramba — exclamou Fabian sempre a rir — caramba, isto é que é um rapaz de qualidades, um homem experiente, tanto no que se refere à coragem quanto ao autêntico comportamento estudantil.
Assim dizendo, ergueu o pequeno para o alto, apesar de este debater-se e espernear, e sentou-o em cima do cavalo que, relinchando alegremente, no mesmo instante saiu trotando com o seu patrãozinho! Fabian segurava seus dois flancos para não sufocar de tanto rir.
— É cruel — disse Balthasar — escarnecer de um ser humano que a Natureza deformou de modo tão horrível, como esse pequeno cavaleiro. Se ele realmente for um estudante você terá de bater-se com ele e, embora isso seja totalmente contrário aos costumes acadêmicos, com pistolas, uma vez que ele não é capaz de manejar nem o florete nem a espada.
— Meu querido amigo Balthasar — disse Fabian — meu querido amigo Balthasar, você mais uma vez está encarando tudo de forma demasiado séria e funesta! Nunca pensei em ridicularizar um ser que nasceu deformado. Mas diga-me, pode um Pequeno Polegar tão cartilaginoso sentar-se sobre um cavalo tão grande a ponto de não conseguir enxergar por sobre seu pescoço? Pode ele enfiar os pezinhos em botas tão absurdamente grandes? Pode ele usar uma túnica apertada com milhares de cordões e galões e borlas, e um barrete de veludo tão estranho? Pode ele adotar um comportamento tão arrogante? Pode ele emitir sons tão barbaramente roucos? Eu pergunto, pode ele fazer tudo isso sem ser com razão ridicularizado como um inveterado poltrão? Mas tenho que ir até lá, tenho que presenciar o alvoroço que vai ocorrer quando o brioso estudante fizer sua entrada na cidade sobre seu soberbo corcel! Com você, não há o que se fazer hoje! Passe muito bem!
A toda pressa, Fabian saiu a correr através do bosque, de volta para a cidade.
Balthasar abandonou o caminho aberto e embrenhou-se na mata mais densa. Ládeixou-se cair sobre um assento de musgo, tomado, ou melhor, subjugado pelos sentimentos mais amargos. Era de fato verdade que ele estava amando a graciosa Cândida, mas tinha encerrado este amor no íntimo de sua alma como um profundo e delicado segredo, guardado de todas as pessoas e até de si mesmo. Assim, quando Fabian falou desse assunto tão sem reservas, tão levianamente, pareceu-lhe que mãos rudes tinham arrancado com atrevida petulância os véus da imagem santa que ele não ousava tocar, e que agora a santa não poderia deixar de se encolerizar com ele próprio para sempre. Sim, as palavras de Fabian soaram-lhe como uma terrível zombaria de todo o seu modo de ser e de seus sonhos mais doces.
— Você — exclamou ele no auge de seu pesar — você me toma, então, por um tolo apaixonado, Fabian! Por um bobo que acorre às aulas de Mosch Terpin para ficar pelo menos durante uma hora debaixo do mesmo teto que a bela Cândida, que vagueia solitário na floresta para ruminar versos lastimáveis endereçados à amada e anotá-los de forma ainda mais lastimável, que danifica as árvores, gravando em seus troncos lisos tolas iniciais, que na presença da jovem não consegue dizer uma só palavra sensata, limitando-se a suspirar e gemer e fazer caretas chorosas como se estivesse sofrendo um acesso de cãibras, que leva diretamente sobre o peito as flores murchas que ela trazia ao regaço, ou ainda a luva que ela perdeu, enfim, que faz mil doidices infantis!... E por isso, Fabian, você me importuna, e por isso todos os rapazes escarnecem de mim, e por isso eu, juntamente com o mundo secreto que se revelou a mim, sou um objeto de chacota.... E a graciosa, encantadora, magnífica Cândida...
Quando ele disse este nome em voz alta, sentiu como se seu coração estivesse sendo trespassado pelo golpe de um punhal em brasa! Ah!... Neste momento uma voz em seu íntimo sussurrou-lhe distintamente que, de fato, só ia à casa de Mosch Terpin por causa de Cândida, que fazia versos para a amada, que gravava seus nomes no tronco das árvores, que emudecia na presença dela, suspirava, gemia, que levava junto ao peito as flores murchas que ela perdeu, e que, por conseguinte, incorria realmente em todas as tolices que Fabian poderia citar-lhe. Só agora ele sentiu em cheio como amava inefavelmente a formosa Cândida, mas sentiu ao mesmo tempo — o que é suficientemente estranho — que até o amor mais puro e forte se manifesta na vida exterior de maneira um pouco estapafúrdia, o que provavelmente se deve à profunda ironia inserida pela Natureza em todos os assuntos humanos. Talvez Balthasar tivesse razão, mas não tinha absolutamente razão ao irritar-se tanto com o assunto. Sonhos que geralmente o envolviam estavam perdidos, as vozes da floresta soavam-lhe como sarcasmo e zombaria; ele correu de volta para Kerepes.
— Senhor Balthasar... mon cher Balthasar — chamaram-no. Ele levantou o olhar e ficou imóvel como que enfeitiçado, pois ao seu encontro vinha o Professor Mosch Terpin conduzindo pelo braço sua filha Cândida. Esta cumprimentou o rapaz, que se transformara em uma rija estátua, com a jovial e amável naturalidade que lhe era peculiar.
— Balthasar, mon cher Balthasar — chamou o professor — você, com efeito, é o mais aplicado, o mais querido de meus alunos!... Oh, meu caro, eu noto que você ama a Natureza com todos os seus prodígios, assim como eu, que sou verdadeiramente louco por ela!... Certamente esteve herborizando em nosso pequeno bosque!... Encontrou algo de proveitoso?... Bem! Temos que travar uma amizade mais sólida!... Visite-me... sempre bem vindo... Poderemos fazer experiências juntos... Já viu minha nova máquina pneumática?... Então, mon cher... amanhã um círculo de amigos irá se reunir em minha casa para degustar chá e pão com manteiga, e para divertir-se em agradáveis conversações, venha ampliá-lo com sua valiosa companhia... Vai ficar conhecendo um jovem encantador, que me foi especialmente recomendado... Bon soir, mon cher... Até logo, meu caro... au revoir... Adeus!... Você virá amanhã para a aula, não é?... Então... mon cher, adieu!
Sem esperar que Balthasar respondesse, o Professor Mosch Terpin já se afastava com sua filha.
Balthasar, em sua consternação, não tinha ousado levantar os olhos, mas os olhares de Cândida queimavam-lhe peito adentro; ele sentia o sopro de seu hálito, e doces estremecimentos agitavam o mais íntimo de seu ser.
Todo seu pesar tinha-se desvanecido, cheio de arrebatamento ele acompanhava com os olhos a graciosa Cândida até que ela desapareceu por detrás das aléias. Lentamente, então, Balthasar retornou ao bosque, para sonhar mais esplendidamente do que nunca.
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